O GOZO E O FEMININO - UMA QUESTÃO DE PODER
- Adrilena Aguiar
- 21 de set. de 2023
- 6 min de leitura
Atualizado: 10 de out. de 2024
DEPOIMENTO DESENODAMENTO CARTEL - “O GOZO E O FEMININO”
BIBLIOTECA FREUDIANA DE CURITIBA (clique aqui)
SETEMBRO/2023

Antes da leitura de qualquer pré-julgamento, preciso esclarecer que o intuito deste depoimento é atender ao meu único e exclusivo desejo de levantar polêmicas e provocações acerca do tema estudado neste cartel. Este escrito não tem qualquer pretenção em ir de encontro a nenhuma teoria da psicanálise nem muito menos descredibilizar nenhum autor ou psicanalista. Ressalto que a eles devo o maior respeito e admiração e sigo no meu percurso dentro do maior rigor teórico, privilegiando na minha prática como tal, à ética da psicanálise acima de qualquer questão de ordem pessoal.
O GOZO E O FEMININO - UMA QUESTÃO DE PODER
Adrilena Aguiar
Este é o relato muito particular dos efeitos de um cartel enodado a partir do interesse comum de 3 mulheres com realidades muito distintas. Objetivo este, facilitado pela Biblioteca, acolhido a princípio pela Nilma e posto em prática com a Paula, nossa +1. Sem elas, sim, mais duas mulheres, não teria sido possível levar adiante esse estudo, pelo menos quero acreditar nisso.
O tema escolhido para estudo foi "o gozo e o feminino”. Algo desta temática se unia e se separava. O feminino, assim como o gozo, vinha de algo único, impossível de ser falado e, sim, vivenciado. Então, nesses 18 meses, nos debruçamos nesse impossível, vivenciando toda a angústia da busca de um entendimento ao menos satisfatório. Devo confessar que, pelo menos para mim, este objetivo não foi atingido.
Não ignorando, nem desconsiderando, que aquilo que engloba o feminino é muito mais amplo que a questão de gênero, opto, neste momento, em me referir apenas à mulher, apenas por uma questão de elaboração particular da minha vivência.
Algo sempre escapou! Desde quando Freud, em seus textos sobre a feminilidade, sexualidade e o Édipo, deixou clara a sua limitação em dar um contorno mais preciso ao que é ser mulher. As histéricas foram para Freud as responsáveis pelo interesse e pelo aprofundamento de seus estudos. Posteriormente, na construção da teoria do Complexo de Édipo, Freud dá o ponto de partida na questão do desenvolvimento e da sexuação dos seres de linguagem. A mulher, por não ter essa identificação fálica, o significante do feminino, vai em busca, de mulher em mulher, por significantes e identificações de como ser feminina, fazendo-se no uma a uma. A mulher seria senão uma construção, mas segundo Lacan, na sua divisão dos seres sexuados, a mulher é não-toda, e a teoria freudiana não dava conta do entendimento das questões ligadas a esta sexuação. Nesta distinção, o mesmo significante ordena a sexuação pra ambos - porém a mulher se apresenta como um conjunto aberto, sem fronteiras, constituída pela contingência e não por um determinismo.
Quando o conceito de feminino se destaca do masculino, essa ausência de significante tão bem marcada pela frase de Freud “O que quer uma mulher?”, desvela outras possibilidades de gozar, um gozar que não é mais o do corpo, o fálico, mas sim um gozo ligado a esta ausência de significantes e o que foi construído a partir daí. O gozo, descrito por Lacan como aquilo que não serve para nada, foi aos poucos se desdobrando no gozo fálico, no gozo Outro e no gozo do Outro. Organizado pela via da linguagem, o gozo fálico se situa no campo simbólico, onde o falo, como significante, causa e delimita este gozo pela sua própria impossibilidade imposta pelo corpo, conduzindo a uma repetição em busca daquilo que poderia ser, mas nunca o será. Um gozo tido como sexual e fálico para ambos. Mas essa definição também não dava conta do gozo da mulher.
Ao longo desses meses, o poder feminino e o poder deste gozo se destacaram, despertando, como consequência, tudo aquilo que minha mãe e as mulheres que foram importantes na minha constituição feminina me trouxeram. Um poder que muitas vezes é escamoteado, negado, reprimido, mas que nunca deixou de se manifestar. Esse poder sempre apareceu no ensino de Freud e de Lacan, tecendo teorias, por exemplo, sobre a masoquista, a mascarada, a teoria da sexuação e as formas de gozo e castração. O poder desse gozo estava ali presente, nas entrelinhas e nos grafos, onde até uma seta que levava a sexuação do falo de um lado a outro desta tabela o demonstrava. O gozo fálico, como proibido à mulher, a leva a outros modos de gozar. Um gozo Outro. Assim, o gozo margeia o significante dando contorno a um prazer total nunca atingido, numa espécie de excitação máxima que se assemelha mais à dor do que ao prazer propriamente dito. O gozo mítico, que também tenta dar conta daquilo que é inapreensível, restringe à mulher a via sexualizada desse experenciar. Esta beatitude impõe à mulher uma via mais aceitável deste êxtase e a direciona a existências opostas, como santa ou puta.
A sugestão sempre presente de que havia um saber teórico sobre o gozo feminino, algo que suplantava a sua real vivência, caracterizou, a meu ver, um poder sobre o que a mulher deveria sentir e interpretar. Um poder de um saber do outro, mas não o da mulher que, diante dessa dita ausência de significantes, se apropria do seu gozo no silêncio, no mistério. Por vezes, aí transparece a sua fragilidade, porém é aí que ela assume a sua verdadeira face. O gozo, o ser mulher, o viver o seu desejo é sem plateia, é sem nome, pode ser por tudo ou pode ser por nada… talvez seja nesse mistério que resida o seu poder de fato.
Não podemos ignorar que, muito antes de Lacan conceituar o masculino e o feminino como posições de gozo e identificação, o conceito de ambos sempre esteve atrelado ao homem e a mulher respectivamente. Nesse sentido, toda a teoria a respeito da sexuação parte do olhar da singularidade masculina, atrelando à mulher a exceção que funda a classe dos homens. Impossível não questionar o porquê de toda a história da evolução da humanidade partir daquele que, de fato, possui o falo, no sentido imaginário e não no simbólico da psicanálise. Então a mulher, aquela que difere do homem por já nascer castrada, impõe a sua alteridade pela sua diferença e pela sua maneira divergente de ser. Impõe-se perante ao homem como aquilo que não é evidente, longe da definição simplista do poder via falo.
Dando corpo aos meus questionamentos, autores como Marcus do Rio Teixeira advertem claramente que uma postura que se assemelhe a uma militância feminista seria uma maneira reducionista e limitada de compreender o que estava sendo transmitido pela psicanálise, com o que não deixo de concordar, até porque o terreno das verdades absolutas não abre espaço para esse não saber que é o que sustenta o saber psicanalítico. Ainda assim, não me valer deste ambiente de elaboração intelectual para questionar verdades, e não para reforçá-las pela via da interpretação teórica, seria uma maneira de sustentar uma prática não alinhada com os propósitos deste oficio.
Então, considerando que o sujeito é fundado pela linguagem e que esta é a base da sua construção de significantes, o termo proposto por Lacan, não toda, não deixa de remeter a uma referência àquela que é incompleta, ou, numa interpretação extremista, aquilo que foge à compreensão pela sua incompletude fálica que poderia ser definida por meio de uma reivindicação, supostamente a um homem. Mais uma vez, esse existir como mulher deriva da figura masculina.
Nesse sentido, Colette Soler embasa os meus questionamentos aprofundando como essa construção teórica foi elaborada a partir de um saber posto, baseado na cultura falocentrista e não por uma via isenta de pré-julgamentos. Assim, mesmo entendendo minimamente o conceito de não-toda, é impossível apartar a ideia de que a feminilidade é sempre posta como algo incompleto, como aquilo que não sendo compreendido com a obviedade do masculino é definido como faltante. Partindo do princípio de que aquilo que é não-todo não pode ser castrado, questiono se o melhor termo seria não-óbvia do que o tão estigmatizante não-toda.
Soler me fez pensar que é possível que essa insistência em classificar os seres sexuados pelo seu oposto ou por aquilo que os difere seja uma vã tentativa de aplacar a angústia da castração do lado masculino nesta divisão dos seres sexuados. À mulher não restam dúvidas da sua feminilidade e sobre quem é. Quanto ao homem, essa necessidade constante em dar esta sustentação, garantia de potência e superioridade fálica, deixa flagrante essa angústia em ter algo outro que os defina. Se o falo, antes uma potência, é um significante da falta, faz necessário, então, um contraponto que mantenha a sua posição, já explicitamente fragilizada.
Sendo assim, é pela sua condição de indecifrável e de reprimido que o gozo feminino se expressa como puro poder. O poder desconhecido do que pode vir a ser, daquilo que escapa às palavras, que não encontra significantes e, por isso mesmo, é um conjunto aberto ao infinito. No sentido que ela se faz no uma a uma, a mulher não existe, de maneira que o seu gozo assume proporções incontornáveis. O poder de incomodar pelo o que há de indecifrável, por aquilo que escapa à compreensão, que causa rejeição, é justamente o que faz com que tudo gire em seu entorno. O poder de se manter em evidência por aquilo que não oferece respostas. Assim, o falo, significante associado ao poder, desvanece diante desse que é o poder feminino do indizível.
Por hora, desenodar este cartel, transmitir o Real da experiência vivida, representa, para mim, algo comparado a este gozo feminino, onde o prazer e a angústia são limitados no dizer e ilimitados no vivenciar.
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