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PESSOAS FORJADAS

  • Foto do escritor: Adrilena Aguiar
    Adrilena Aguiar
  • 5 de fev. de 2024
  • 10 min de leitura

Atualizado: 10 de out. de 2024





Eu sempre tive um certo fascínio por metáforas. A capacidade do significado de algo deslizar sob outras formas e trazer assim novos sentidos, novas maneiras de elaborar uma mesma questão, representa para mim uma saída genial e criativa de ampliarmos o nosso olhar. O campo das metáforas, por ser uma das linguagens do inconsciente, está sempre atrelado ao que chamamos na psicanálise de significante, que de maneira bem resumida, é o significado muito pessoal de algo, representado pela linguagem. Assim, quando trago que é um significado pessoal, é no intuito de deixar bem marcada essa experiência subjetiva, individual e única, que temos em relação a tudo o que nos constitui como sujeitos. Resumindo ainda mais, um significante nunca é o mesmo para uma ou mais pessoas.


Há algum tempo, um significante me acompanha, me causando um certo incômodo, não somente pelo seu sentindo, mas por ele vir desse olhar do outro sobre mim. E por se tratar de um significante que interage diretamente com o incômodo do seu significado, percebo-o como uma verdade que está além daquilo que me denomino.


O significante por vezes pode assumir uma função como de um nome próprio em nossas vidas, tamanha é a nossa identificação com o que ele nos traduz. Torna-se impossível, pelo menos a uma primeira percepção, nos desvincularmos dele, como algo que sempre estará relacionado a nós mesmos. É certo que o significante tem um peso e um significado muito individual e subjetivo, mas como apartar esse juízo de valor quando este vem acoplado a esse olhar do outro que nos constitui? Daquele outro  que exerce uma importância sobre nós? Como descolar sem deixar marca? Ainda mais uma marca tão ligada a esse incômodo significado?


E eis que me surge o adjetivo “forjada”, recebido como elogio vindo de quem admiro e ofensa de quem não considero. Tamanho  foi o incômodo trazido, que fui pesquisar o real significado desta palavra, aquele sentido do dicionário que apesar de ser diverso à qualidade atribuída a mim, convergia de diversas maneiras a minha constituição como sujeito de desejo, da maneira como eu me coloco no mundo sendo o que suponho ser.


Segundo o Dicionário Online o adjetivo forjado significa a "característica do que se forjou, do que foi moldado em forja para adquirir um determinado aspecto ou uma determinada forma.” Expandindo essa pesquisa, trago também o significado deste verbo, o forjar que é "fabricar algo na forja, em um modelo. Mais utilizado para o trabalho feito com o metal, como forjar uma espada”. Há também o sentido figurado, onde forjar é entendido como inventar, como criar uma evidência falsa, modelar algo que não é verdade. Como por exemplo no emprego da expressão "forjar caráter", que significa parecer ser uma coisa que não é. E  também, entre os sinônimos para esta palavra há: adulterar, falsificar, manipular, fabricar, idealizar, criar, tramar, inventar e maquinar.


Para completar a profusão de significados e significantes, ainda há o sentido bíblico, a expressão "forjado por Deus" pode ser interpretada como algo que foi criado ou moldado pela vontade divina. Sugerindo que algo ou alguém foi especialmente designado ou preparado por Deus para cumprir um propósito específico.


Esse sentido do sagrado sobre nós, aquilo que está destinado para nossa vida, talvez não caiba aqui por ser uma discussão que vai muito além do que pretendo trazer. Porém dentre todas essas definições nenhuma tem mais peso sobre nós que um significante. 


Mas o que esse adjetivo, além de todos esses significados que mencionei, fala sobre mim? Escrevi rapidamente no meu bloco de notas que o que é forjado é submetido a alta temperatura para ser moldado e em seguida enrijecer novamente. Escrevi para ilustrar imaginariamente o que aquilo queria me dizer. Então, isso quer dizer que há uma transformação feita à força, de maneira violenta, e isso me remete a violar, a uma ideia de integridade perdida, para que depois de transformado endureça novamente de uma outra maneira. Veja, se pensarmos que a força utilizada nesse processo de transformação produz uma outra coisa, de maneira intencional, transforma aquilo que não tem uma forma, ou não tem a forma desejada, em outra coisa rígida… RÍGIDA!!! Algo rígido resiste a toda sorte de eventos externos sem alterar a sua forma. Não há possibilidade de transformação a não ser deixando de Ser o que se É. Deslizando metonimicamente, isto é, de significante em significante, concluí que de forja em forja nada resta da identidade, da forma inicial, há um apagamento do que existia anteriormente. Há uma intencionalidade desse apagamento do que se era. É a parte pelo todo. Indo um pouco mais além na viagem da minha reflexão, só se destrói algo submetendo a uma violência quando não se é dado o devido valor e respeito. Respeito ao individual de cada um. Ou… quando temos um propósito ainda maior.


Porém… sempre existe um porém!! Ao longo da nossa vida, é exatamente isso que acontece. Nós seguimos de forja em forja, nos desfazendo e refazendo, interagindo e reagindo, mas sem nunca perder a nossa característica principal, aquilo que nos funda, que poderíamos enquadrar aqui como o aço, que não deixa de ser aço só por ter sido submetido a outras formas. Não importando por que meio. Assim como nosso inconsciente.


Me valendo do clichê, “a palavra tem poder”, retorno mais uma vez para a importância do significante em nossas vidas. E é curioso o quanto um significante pode se desdobrar em vários outros, deslocando o discurso desse sujeito a um outra forma de elaborar a falta que esse sentido primeiro não dá conta. A isso chamamos de metonímia, uma das leis do inconsciente, conforme exemplifiquei acima.


Forjada, assim como uma espada, afiada e mortal e extremamente resistente, DURA, RÍGIDA. Usada em lutas! Símbolo de poder e violência. Como deslizar entre esses sentidos em direção a algo mais maleável? Como flexibilizar sem perder a forma? Afinal, rigidez não é dureza. Assim para atingir esse ponto ideal, onde o metal seja duro o suficiente para manter o fio, mas não tão duro que fique quebradiço fazendo com que rache ou se despedace com um impacto, é fruto de mais um processo violento de submeter o metal a um resfriamento, esquentando-o posteriormente, o suficiente para se atingir o ponto necessário. É preciso saber manipular o metal para fazer uma boa espada. Temperar. Assim como é preciso dosar o impacto das experiências vividas na maneira como nos constituímos. É preciso ser preciso! É preciso saber se forjar na medida certa para que sejamos firmes nas nossas convicções e maleáveis na nossa evolução. Aí está a beleza de uma espada. No perfeito equilíbrio entre função, sentido e desenho.


Historicamente há uma ligação da violência entre a espada, suas histórias e a sua forja, que é praticamente impossível de dissociar. Porém existe todo um misticismo em torno delas. Lendas, contos, histórias, simbolismos que misturam atos heróicos, sagrados e também mortais. São os porquês, as razões, os motivos, as consequências…


No tempo das Cruzadas, entre os séculos XI e XIII, época marcada por expedições religiosas e militares, que visavam retomar para os cristãos a Terra Santa, que estava sob domínio islâmico, surge a cimitarra. A cimitarra é uma espada lendária. "Nessa época a espada não era uma mera arma usada na guerra, mas estava cercada de um simbolismo muito proeminente tanto na tradição cristã quanto na muçulmana. Para os reis e nobres da cristandade que lutaram contra os muçulmanos, a espada simbolizava a cruz de Cristo (cruzamento do punho com o fio)". Essas mesmas armas entre outros objetos, apreendidas pelos árabes foram derretidas e transformadas em outras armas ou objetos. O tal do apagamento do que se é, porém, independente do que aquelas armas se tornaram, o aço ainda é o mesmo, simbolicamente carregando uma profanação do sagrado em oposição a um outro sagrado não reconhecido e tido como ameaçador.


Derreter objetos religiosos de um oponente é quase como promover um apagamento daquilo que há de sagrado, um elo fundamental na formação das nações antigas. Um metal transformado em um objeto sagrado e consagrado a uma crença e nação, derretido para se tornar uma arma mortal nas mãos do inimigo tem um efeito simbólico devastador. Essa afronta desliza como esse metal derretido passando de mãos e mãos. Assim, como quando permitimos que nos roubem o metal da nossa essência, profanando aquilo que é o sagrado em nós para nos forjar em algo diferente do que somos, nos anulamos para nos tornar instrumentos para o outro. Aqui me valho da Regra de Ouro da Psicanálise, a associação livre.  Que de livre não tem nada, já que a tendência do inconsciente é se repetir. De forja em forja, indefinidamente.


No reino das lendas e mitos, a Excalibur, se destaca por seu papel revelador e não de potência destrutiva e violenta. Merlim  afirmou que esta espada encontrava-se cravada na pedra e só poderia ser retirada por um legítimo nobre. Muitos tentaram em vão, mas foi Arthur, legítimo herdeiro do trono que a retira da pedra com facilidade, provando assim a sua linhagem e restabelecendo o seu poder e realeza. 


Na ficção temos exemplos de espadas que assumem quase um papel principal na narrativa. Em Game of Thrones as melhores espadas são batizadas e trazem consigo a magia dos rituais usados para fabricá-las. As lâminas mais poderosas e desejadas são feitas de aço Valeriano, mais leves e afiadas, como a Garralonga do Jon Snow e a Agulha da Aria. 


No misticismo do tarot, a espada simboliza em primeiro lugar a detenção de uma verdade,  assim como uma revelação, uma descoberta, que levará posteriormente a uma decisão, uma comunicação e por fim a luta. O naipe de espadas simboliza o dom do intelecto e da mente racional, que não deixa de ser um poderoso e perigoso atributo. Carregando também a delicada relação da mente sagaz e do desejo de honestidade.


Voltando ao exemplo da espada propriamente dita, a maior contradição da dureza deste material é que quanto mais duro mais fácil é de se quebrar. Uma boa espada precisa além do fio preciso, uma maleabilidade bem dosada para que não se quebre com o impacto. Assim como nós!


Deixando se ser o que se é, afinal uma espada sem a sua rigidez e sem o seu fio não tem a função de espada. Serve a outra coisa, desacoplada de qualquer sentido individual. É uma espada que não é uma espada. E assim somos nós, a rigidez dos nossos conceitos, das nossas narrativas, daquilo que supomos ser, nos aprisiona num sentido único de vida que mais do que oferecer garantias, nos causa angústia e sofrimento. A nossa capacidade de nos transformarmos e de interagir com o nosso entorno, elaborando outros sentidos a partir desse significante, talvez seja a maneira mais fluida de viver. 


Deslizar de significante em significante sem perder o laço que os une, pode proporcionar uma experiência de vida mais rica e menos desgastante, já que quando admitimos que aquela forma de ser não nos garante nada e que também não é a única forma possível, nos faz deslizar também naquilo que é o possível do nosso desejo. 


Quem sabe deslizando, sob o fio da espada, possamos sem empregar de nenhuma violência extrema, cortarmos suavemente uma seda em pleno ar. A Katanga, espada japonesa cercada de simbolismos, teria supostamente essa capacidade. A sua forja se desenrola quase como um rito sagrado, onde o forjador entoa mentalmente mantras invocando três elementos: Kami (Deus), kokoro (coração) e kimōchi (sentimento). Ele acredita que os espíritos de seus mentores e antepassados acompanham todo o trabalho. “Sem o ritual, a espada não passa de uma lâmina afiada. Katana tem que ter alma. É um trabalho espiritual”, assegura Suemitsu, um dos raros forjadores no Brasil.


Uma espada habilidosamente afiada produz um corte seco, mais preciso, com menos arestas. Resguarda a possibilidade de uma restauração. Regeneração! Uma espada “cega" produzirá um corte impreciso, com restos e rebarbas que terão como única função demonstrar a imperícia e violência desse corte. Um esgarçamento que deixará exposto seus vestígios, impossíveis de serem regenerados. Desvirtua assim o objetivo que era o rompimento eficaz e objetivo, por algo que transparece todo o sofrimento do impacto, nos direcionando a uma outra experiência com o ato. É quando o efeito prevalece ao objetivo. Deixa marcas! E marcas tão danosas que não é possível qualquer restauração.(reconstituição)


Seria o forjar com amor ou com propósito o responsável por tamanha precisão e perfeição no resultado? Percorri todo esse raciocínio entrelaçando internamente forjas, espadas, lâminas e cortes, com o percurso de uma análise e toda a dificuldade que lidamos ao esbarrar com um significante. As palavras podem ser tão letais quanto um golpe de uma espada. Palavras cortantes podem desfacelar a delicadeza da seda que são nossas ilusões. Palavra afiada que corta como uma navalha os fios que tecem um ser. Cortantes como só as palavras estrategicamente usadas são capazes. Por isso o fio que produz esse corte tem um importância fundamental no resultado. Nada é tão cortante quanto palavras de rejeição saídas da boca de quem consideramos, nada é tão cortante quanto uma crítica bem colocada. Ficamos expostos, como uma ferida.


E assim são os efeitos de uma análise… metaforicamente.


Ao longo da pesquisa e da elaboração desse texto, quanto mais pesquisava mais me dei conta da profusão de sentidos e direções que uma simples palavra pode ter, ficando evidente assim o efeito metafórico e metonímico do significante. Nesse texto pude experienciar particularmente essas duas leis do inconsciente. A metáfora produzindo mais do mesmo de uma maneira diferente e a metonímia com sua capacidade de escorregar, produzindo outros sentidos para mesma coisa. Associando livremente a respeito de todo esse tema, concluí que o ferreiro que nos forja talvez seja o outro, e todo o nosso entorno. E eu, com meu inconsciente operando e insistindo em se desvelar, me identifiquei com cada um dos sentidos propostos, percebi que de alguma maneira o adjetivo atribuído a mim me transformou, produziu uma outra forja. Aceitei que existem as pessoas que são esculpidas e pessoas que são forjadas. Eu fui esculpida metonimicamente através das forjas metafóricas impostas pela minha trajetória de vida. Essas forjas me permitiram alterar o sentido e o destino daquilo que mais me move, o desejo de ser, apesar tudo, quem eu sou e quem eu me tornei. Sim, fui esculpida por forjas, metaforicamente isso me deu muito poder. 


Esse texto e toda essa elaboração profunda sobre mim mesma, porque esse texto não é sobre forjas, é dedicado para aquele que me atribuiu este significante. Ele talvez não tenha noção do impacto que este adjetivo teve na minha percepção sobre a minha trajetória de vida. Ele como bom ferreiro que é, forjou junto comigo reflexões importantes sobre vida, sobre encontros e sobre transformações. Ele, talvez, seja o ferreiro com a habilidade e a precisão necessária para conduzir uma forja tão profunda com o amor e a generosidade necessárias para a mais bonita fusão de todas. Foi a partir desse encontro que surgiram tantas referências e metáforas, que pude deslizar por sobre tudo o que me constituiu ao longo da minha vida. Elaborei cada significante desta metonímia e aquilo que poderia ter se tornado duro, quebrando com mais facilidade, assumiu a rigidez necessária para continuar operando, porém maleável o suficiente para continuar intacto. Esse texto fala sobre mim, sobre ele e também sobre a espada que foi forjada a partir do encontro e da mistura dos aços/essências que somos nós dois. A nossa fusão/encontro produziu essa espada… a partir disso o tempo se encarregará de produzir metáforas só nossas, deslizando metonimicamente por todos os nossos sentidos e escrevendo a sua própria história.


Adrilena Aguiar

01/02/24


 




 
 
 

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